Crítica de Filme: Onde Está Segunda?

Se o filme tivesse sido lançado há uns 5 anos, eu estaria empolgadíssima com o thriller sci-fi que tem 7 irmãs gêmeas como protagonistas.

Mas vivemos num mundo pós Orphan Black, em que Tatiana Maslany interpretava as mulheres clones com maestria e a produção e a direção a permitiam explorar toda a complexa personalidade de cada uma delas, com nuances e traços que iam muito além do arquetípico clichê das personagens femininas superficiais de Hollywood.

E acima de tudo, estamos em 2017, num mundo onde o feminismo já nos explicou a importância da representatividade feminina pela mídia. Então por mais que o filme tenha boa cenas de ação num roteiro previsível, seus problemas são de uma seriedade que não podemos mais ignorar.

Se vc ainda não viu o filme, vá assistir antes de passar desse ponto. Este post contém spoilers.

Produzida pela Netflix, a história se passa em um futuro não muito distante, em que a capacidade de produção de alimento não é suficiente. Como solução, os cientistas criam alimentos transgênicos de rápida produção e em maior quantidade, mas que tem um efeito colateral inesperado: começam a nascer gêmeos, o que piora a situação. O Governo então instaura a lei do filho único e os filhos excedentes passam por processo de criogenia para serem acordados quando o problema populacional for resolvido.

Nesse mundo, nascem 7 irmãs gêmeas, que são criadas escondidas pelo avô. Cada uma tem um nome da semana e só pode sair na rua no dia da semana com seu nome. Lá fora, todas assumem a mesma personalidade e vivem a mesma vida.

Domingo é a boa moça das 7 irmãs. Ela está saindo da igreja quando a vemos pela primeira vez. Segunda é a certinha trabalhadora. Terça é a frágil doentinha que precisa de ajuda até para pentear o cabelo. Quarta é a esportista e lutadora. Quinta é a rebelde que odeia tudo. Sexta a nerd que entende de computador e tecnologia e se descreve como “não sou ninguém”. Sábado é a festeira que adora beber. Não existe complexidade. É tudo fácil de entender.

Orphan Black se fortalece nas cenas em que as clones interagem entre si. Onde Está Segunda? começa com esse mesmo ritmo, mas logo se perde na ação e a interação entre as irmãs se torna frágil o suficiente para tornar o final do filme previsível.

Noomi Rapace (Prometheus e a versão sueca da trilogia Os Homens que Não Amavam as Mulheres), que dá vida às irmãs, fez um excelente trabalho com o pouco que lhe foi oferecido. Mas mesmo uma atriz capaz não poderia transformar um roteiro cheio de clichês em um filme formidável.

Um dia, Segunda desaparece. Na busca por ela, as irmãs começam a ser caçadas pela agência que controla a lei do filho único. Em meio de cenas de ação bem-feitas, as irmãs vão morrendo. A cena da morte de Domingo é até interessante: quando percebe que está morrendo, Domingo diz que desistiu e uma das irmãs responde “você deveria ser a que tem fé”. É como se os roteiristas do filme piscassem o olho para o espectador e dissessem: “eu sei que a gente está fazendo um clichê”. Quase faz com que o filme seja desculpado. Quase.

Então entra o interesse romântico. Num roteiro previsível, Segunda está apaixonada por um agente de Alocação de Crianças. Outro clichê: ele é um bom rapaz, que não sabe nada sobre a vida secreta da amada e que acredita com uma confiança beirando a infantilidade que a agência está fazendo o melhor trabalho possível e que as crianças serão acordadas num futuro próximo.

Sabe aquela história da coincidência que salva toda a história? Pois bem. Graças a esse bom moço que descobre que a agência não é magnânima e que sua amada foi sequestrada e possivelmente assassinada, as irmãs conseguem acesso ao serviço de alocação de crianças para desmascarar Nicolette Cayman (Glenn Close), a manda-chuva fodona que tem ambição de controlar o governo. E essa é minha maior decepção com o filme.

Tommy Wirkola (conhecido pela péssima adaptação da história de João e Maria de 2013) tem uma direção unilateral e monótona: preto é preto, branco é branco e não existem muitos tons de cinza entre eles. Glenn Close tirou leite de pedra ao mostrar duas nuances de Cayman: dura na lei, mas mostra um certo remorso com o que faz com as crianças. Na hora em que a verdade é revelada (as crianças não passam por criogenia, mas são assassinadas) em vez de assumir suas ações, Cayman tem um faniquito digno de filmes da década de 50 em que a mulher frágil não sabe lidar com fortes emoções e desmaia.

Isso mesmo, senhoras e senhores. A chefe fodona da agência que manda assassinar crianças e caçar as irmãs gêmeas desmaia.

Logo em seguida, para piorar, ela tem uma crise histérica e confessa tudo, na frente que várias pessoas, culpando tan-tan-taaaaaaaaan… (suspense desnecessário) Segunda!

Sim! Segunda está viva e estava trabalhando com Cayman para acabar com as irmãs e ela poder viver a vida dela.

“Como assim?”, você me pergunta. Sabe o que levou a certinha trabalhadora que curte sexo BDSM (Wirkola não teve tempo para aprofundar as personagens, mas teve tempo para mostrar que Segunda teria de dado bem com Christian Grey) a trair as 6 irmãs? O amor. Ah, o amor!

Sabe o agente bom moço? Ela estava apaixonada e precisava viver com ele. Então ela trama contra as irmãs. No finalzinho, a gente descobre que Segunda estava grávida de gêmeos e queria que seus filhos vivessem sem se esconder. Mas ela teve seu castigo e morreu e os bebês foram gerados num tanque, com as duas irmãs sobreviventes admirando os gêmeos ao lado do agente bom moço.

Então é isso. Não tem mais jeito. Acabou. Boa sorte.

Para a mídia, somos mulheres tolas, estereotipadas e superficiais. Podemos até ter atitudes “de macho”, mas no momento em que tem homem no meio, vamos, sim, trair nossas irmãs. Afinal, mulher é tudo cobra.

Não é possível que em meio a tudo que se tem falado sobre representatividade, sobre construção de personagens femininas complexas ainda existam produções que passem essa mensagem.

Não é possível que num mundo pós Orphan Black, Scandal, How to Get Away With Murder, Big Little Lies, Castle, House of Cards, Game of Thrones, Empire, Orange is the New Black, The Handmaid’s Tale e tantos outros com personagens femininas complexas ainda considerem filmes assim aceitáveis.

O conceito do filme é interessante, com a possibilidade inicial de trabalhar e desenvolver questões ligadas a personalidade, identidade, vida familiar e até cenas de espionagem dignas de filmes como 007 dentro de um universo distópico. Mas Direção e Roteiro falham ao recorrer aos clichês da violência gratuita. O resultado é um filme previsível.

E sem a construção de personagens fortes, a única coisa que sobra ao final é o desconforto de ver na tela a repetição de um clichê que há muito já deveria ter sido extinto: o da mulher que irá trair suas irmãs por causa de macho.

Em pleno 2017, isso não é mais aceitável.